Crianças da Noite

Assim somos chamados todos nós quando renascemos após enxergar a morte cara a cara. Porque, acreditem, isso realmente acontece. Quando você é mordido, quando você é escolhido para receber a dádiva da vida eterna, você precisa sentir a morte se aproximar, precisa ver o cinza gelado das pupilas sem vida que ela esconde sob o capuz escuro e sentir o calor sanguíneo deixar seu corpo à medida que ela se afasta novamente.

 Quando despertamos, após este momento surreal, e recebemos nossa primeira refeição direto do pulso de nosso mestre… entendemos o que a vida nos reserva dali pra frente. É como se tudo no mundo ganhasse novas cores, novos aromas. Passamos a viver pelos nossos sentidos e não mais por nossa razão.

 Nossa consciência se apaga lentamente enquanto o sangue, incrivelmente quente de nosso mestre, acaricia nosso paladar, fazendo cócegas em cada canto da boca e acendendo partes de nosso organismo até então desconhecidas ou deixadas de lado.

 Por isso somos crianças. Não entendemos limites, não respondemos com a mesma lógica de antes. Simplesmente agimos. E não há essa premissa de “agir primeiro e pensar depois”. A existência de certo e errado se mesclam na necessidade de satisfazer os próprios instintos e desejos. Quando se é uma criança da noite, um neófito, simplesmente não se pensa. NUNCA!

 Por isso o ato de se ter um “filho”, uma cria como costumamos chamar em nossos ninhos, é bastante incomum. O mestre é responsável pelos atos da cria até que o instinto passe a ser dominado pela razão novamente. E esse processo pode levar semanas, meses ou anos até.

 Eu demorei alguns meses, sete para ser exata. Fernão dizia que fui sua aluna mais aplicada, sua cria mais sensata e por isso mesmo a mais querida. Eu não fui a única cria a dividir sua cama, mas sei dentro de mim que foi apenas comigo que ele dividiu sua intimidade.

 Para vampiros existe uma diferença clara entre sexo e intimidade, do mesmo jeito que os humanos diferenciam sexo de amor. Ainda tentarei explicar isso, mas não hoje. Não agora.

 Hoje, 10 de dezembro, seria aniversário daquele a quem eu transformaria em minha primeira cria. Felipe, seu nome. Um belo rapaz, forte, corajoso, encarou minhas presas na primeira vez que o ataquei com uma espécie de curiosidade arredia. Ao mesmo tempo em que ele se sentia impelido a me rejeitar, algo dentro dele gritava para que eu sanasse suas dúvidas, para que o mordesse de uma vez, para que sugasse de dentro dele todas as incertezas que carregava junto de seu sangue.

 Foi saboroso. Prazeroso ter Felipe daquele modo. O alimento, quando caçado e tomado a força tem um gosto muito mais intenso. É como provar a essência da vida que já não existe mais nos seres noturnos, como eu.

 Eu me alimentei de Felipe com uma fome que só senti quando podia me realimentar de Fernão. Uma prática que não é comum depois que você vira vampiro, especialmente porque estreita os laços de sangue que você tem com o outro. E aqui eu devo admitir que a senhora Charlaine Harries acertou ao descrever essa ligação em sua obra Southern Vampires.

 Mas voltando ao Felipe, bem, após ter me saciado de todas as formas possíveis eu o deixei. Ordenei que me esquecesse. E se tem uma habilidade a qual desenvolvi com mais perfeição essa foi a Dominação. E eu a usei sem remorso sobre ele, dizendo-lhe que nada daquilo havia de fato ocorrido.

 Voltei para meu refúgio, para minhas ações corriqueiras e para meu tempo de estudos e treinamentos. Mas na noite seguinte, lá estava Felipe, no mesmo lugar onde eu o ataquei antes. Ele procurava por mim. E com toda minha habilidade de dominação, havia restado algo de mim dentro dele.

 E isso mexeu comigo. Eu caminhei até onde ele estava e ele me encarou por alguns segundos antes de se virar e sair para uma rua escura. Eu o segui sem pensar duas vezes. Ele parou junto a uma parede de pedra e esperou que eu me aproximasse, ainda de costas.

 Quando ele pôde sentir meu corpo mais próximo ao dele, virou-se de frente e inclinou a cabeça para o lado, num ângulo irresistível para um vampiro faminto. Mas eu não tinha fome no momento. Pelo menos não fome de sangue. Toquei seu pescoço com a ponta de meus dedos gelados e segui até a linha de seu queixo, puxando seu rosto para a posição normal.

 “Não é isso o que você quer?” – ele me perguntou decepcionado.

 “E por que eu iria querer isso?” – respondi com um sorriso calmo.

 “Eu não me enganei. Eu sinto aqui, no meu peito, cada vez que meu coração bate, que é a você que eu pertenço desde ontem.”

 “Isso seria um tanto romântico se a rua não estivesse tão escura e o lugar não fosse tão perigoso.”

 “Não, não é romantismo! Se não foi você… Eu preciso achar com quem eu estive ontem. O que me fizeram, precisam fazer de novo! Preciso sentir tudo aquilo novamente!”

 Ele parecia desesperado, enquanto seus olhos corriam por todos os cantos daquela escuridão.

 “E o que você sentiu?” – eu indaguei sem desviar meus olhos dos dele.

 “Não sei dizer, mas é como se cada parte do meu corpo explodisse em pequenas ondas de arrepio.” – ele respondeu sem hesitar, atendendo ao meu comando silencioso.

 Eu sorri. De verdade. Peguei sua mão e levei até a minha boca e fiz com que ele passasse a ponta dos dedos pelas minhas presas, já expostas. Estremeci junto com ele, diante do contato. Mas não o mordi. Não poderia morde-lo. Não ainda.

 Arrastei-o comigo por caminhos tortuosos e chegamos até uma casa rústica, mas iluminada por completo e de onde vinha uma música agradável. Alex, mais uma vez, tocava seu violão enquanto uma outra vampira, cujo nome não mais me lembro, dançava provocativamente. Havia humanos ali, todos responsáveis por seus senhores e a expressão maravilhada de Felipe ao entrar em nosso mundo foi indescritível.

 Os olhos cobiçosos dos outros vampiros caíram sobre a minha companhia e eu podia sentir no ar o cheiro da cobiça. Puxei as mãos de Felipe ao redor da minha cintura e fiz o que sabia ser capaz de mostrar a todos que o rapaz estava comigo. Não pensem que o mordi, não gosto de me alimentar na frente de todos. Ao contrário, eu inclinei minha própria cabeça, exibindo meu pescoço pálido e insinuando que Felipe é quem deveria morde-lo. E ele obedeceu.

 Minto, ele não apenas obedeceu, mas superou qualquer expectativa minha ou de qualquer presente. Ele beijou a área oferecida da minha pele, mordiscou levemente e em seguida lambeu.

 Pronto! Estava feito! Eu assumia Felipe como meu carniçal dali em diante. Fernão observou tudo calado. Ele nunca questionou minhas ações e mesmo quando eu perguntei o que ele achava do que tinha feito, ele apenas me disse:

 “Ele deve ser especial…”

 E foi! Felipe foi mais que especial. Eu o alimentava com o meu sangue, ensinava-lhe tudo sobre a nossa vida e podia-se dizer que eu o preparava para ser mais um para o nobre clã dos Tremere. Ele era inteligente, curioso, dedicado. Auxiliava-me em meus rituais, e tudo o que eu não conseguia fazer de dia podia confiar a seus serviços.

 Foram anos, acho que três ou quatro, de uma sintonia perfeita. Até a volta de Alex e seus companheiros ciganos. Fizemos uma festa, como sempre. Muito vinho, muita música e pouca razão. Era uma noite especial, já que desta vez Fernão não permitiu que os ciganos ficassem acampados, oferecendo hospedagem a todos eles.

 Todos extrapolamos aquela noite. Todos deixamos os piores instintos voltarem como se fossemos novamente neófitos. E eu terminei minha noite na cama de Fernão, esquecendo-me por um momento de meu fiel carniçal.

 Na noite seguinte, quando procurei por Felipe não o encontrei em seu quarto, na biblioteca no templo ou em qualquer lugar. Mas um carniçal e seu mestre têm um elo forte e minha intuição me mandou exatamente para o lugar que eu temia que ele estivesse: a cama de Alex.

 Meu amigo cigano sorriu ao me ver entrar e observar o meu servo nu, deitado ao seu lado, com o peito e as coxas marcados de mordidas. Eu os encarei e chamei por Felipe. Ele abriu os olhos, ainda sonolento, e quando percebeu onde estava, como estava e que eu estava ali, atenta a tudo, ele se encolheu.

 Acho que ele esperava ser espancado, torturado ou algo que lhe infligisse uma dor física. Mas o que eu fiz foi demais para ele. Ordenei que se levantasse, mesmo nu, e assim que fui obedecida, mordi meu próprio pulso e suguei meu sangue o cuspindo em seguida no chão, aos pés dele.

 Seus olhos se arregalaram. Sabia o que aquilo significava. Ele não mais tomaria meu sangue, não mais dividiria comigo as descobertas alquímicas que faziamos e jamais me tomaria em sua cama novamente.

 Ele chorou como uma criança e confesso que me senti mal. Confiava em Felipe e me vi apunhalada pelas costas, pelo meu carniçal e pelo meu amigo.

 Procurei Fernão em seu refúgio secreto. Era a única que tinha acesso a ele. Meu mestre ainda descansava e eu me aconcheguei em seus braços tal qual criança com medo do escuro. Ele passou as mãos por meus cabelos e ficamos assim, por alguns minutos.

 “Não vai me perguntar o que ocorreu?” – eu disse num sussurro.

 “Desde quando eu preciso ouvir da sua boca as coisas que perturbam o seu coração?”

 A resposta dele arrancou um sorriso melancólico dos meus lábios. Afundei-me ainda mais entre seus braços, sentindo o aroma almiscarado de suas roupas.

 “Eu o teria feito minha cria” – comecei dizendo – “E Alex sabia disso, ele já havia enxergado isso em mim”.

 “Pense que Alex lhe fez um favor, minha pequena. Se o rapaz fosse mesmo digno do nosso nome, da nossa tradição, teria resistido a qualquer encanto do cigano. E sobre sua amizade com o ravno, não se desfaça dela. Apenas entenda que as pessoas não podem dar mais do que são capazes. E eu sei que Alex lhe dá tudo o que tenha, mesmo que isso ás vezes pareça pouco para os nossos padrões. E lembre-se também que nem sempre os nosso padrões são bons para todas as pessoas.”

 Ele selou nossa conversa com um beijo suave e terno em meus lábios. Depois seguiu até o quarto onde Alex estava e lhe pediu que fizesse o que precisava ser feito.

 Não soube mais de Felipe. Mas desisti desde então de ter uma cria. Isso faz tanto tempo! Acho que estou preparada para tentar de novo!  

~ por reallfangs em dezembro 10, 2009.

3 Respostas to “Crianças da Noite”

  1. Beatrice, confesso que sou apaixonada pelo seu mundo! Pelo sobrenatural, pelo mistério, as lendas, as origens, os fatos que devemos conhecer, os fatos que devemos acreditar…
    Simplesmente não é fácil digerir a decepção com alguém que temos tanto cuidado, ou mesmo o carinho que demonstramos por ele. Ver esses planos jogados ao vento como aconteceu com o Felipe, é dolorido seja você humano ou vampiro.
    Do pouco que vi este Alexander tem uma conexão muito forte com você. Talvez sua atitude perante o Felipe não seja tão má como bem o Fernão comentou…
    Estou curiosa para saber um pouco mais. Para conhecer o Alex mais profundamente e saber as suas novidades e lembranças de sua vida tão longa e interessante!

    At,
    oneslasher

  2. Hmmm. Não pude deixar de sorrir diante dessa lembrança. E suspirar. O sangue dele ainda canta em minhas veias ressequidas, mas canta em notas dissonantes. Ele não era possível para o seu mundo. E, convenhamos Beatrice, for you, or the bestest, or absolutely nothing. Eu sempre lhe ofereci o melhor, porque te dar prazer é ter prazer. Este é meu jogo, eu faço as regras… ou faço com que as minhas “opiniões” sejam devidamente consideradas.
    Nesse jogo, em especial, win or win. Se merecedor do seu desejo, não aceitaria um convite tão simples. Se não merecedor, porque eu não poderia brincar com ele? Eu entendo que você o considerava seu, mas, seu… quanto?
    Esse limite, essa dúvida, se tornou possibilidade. E você entende que eu não consigo resistir a uma possibilidade de desafiar os padrões… Inclusive, aqueles propostos por você.
    Mas fazia tanto tempo… Ou foi ontem?
    Tempo deixa de ter importância numa situação como essa. O que importa é que os espaços entre nós se tornaram menores… Não se esqueça que ele partilhava do seu sangue, e eu tenho um paladar… hmmm… apurado, senão preciso. Naquele gosto rascante senti o sabor amadeirado, almiscarado, licoroso do delicado rubi que corre em suas veias. As vezes. Quando você se alimenta bem.

  3. viajei legal agora no seu blog…adorei gatan! 🙂
    super sucesso!

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